Com cerca de 20 intervenções diretas do governo Bolsonaro na nomeação dos reitores das universidades e institutos federais, o fascista e seus ministros demonstram que são inimigos da ciência, da educação e dos jovens estudantes, e querem acabar com os espaços de resistência e construção do novo. Em todo país, os estudantes e a comunidade científica se mobilizam para denunciar os interventores e exigir respeito à democracia e autonomia universitária. Para entender por que é grave a interferência do governo na gestão das instituições federais de ensino, é preciso resgatar o princípio de autonomia e seus desdobramentos para a produção do conhecimento.
O princípio da autonomia universitária é uma conquista histórica em todo o mundo. Tem origem no entendimento de que o conhecimento precisa ter liberdade para ser produzido de maneira independente dos governos, ainda que seus resultados contrariem as normas vigentes de determinada sociedade. Sem que a igreja, o governo ou o mercado possam interferir naquilo que é pesquisado e estudado dentro das universidades, espera-se que a ciência esteja livre dos interesses e exista a serviço apenas do benefício coletivo.
No Brasil, a Autonomia Universitária é garantida pela Constituição promulgada em 1988, através do artigo 207 que diz: "As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão". Note-se que este dispositivo constitucional prevê "autonomia" em três pilares indissociáveis e complementares. Para que seja possível exercer autonomia didático-científica, as universidades precisam de soberania na gestão de suas finanças, patrimônio e administração, só assim podem de fato decidir em quais áreas de pesquisa investir, criar cursos e ações de extensão com a comunidade, contratar pesquisadores, docentes e servidores. No entanto, sabemos que esse é só mais um dos artigos da constituição que não é respeitado.
Na verdade, por não terem um recurso financeiro vinculado e obrigatório, as universidades ficam à disposição do orçamento disponibilizado pelo governo para investir e custear o seu funcionamento. Fato é que com os sucessivos cortes orçamentários dos últimos anos e a Emenda Constitucional 95 que congela os gastos públicos com educação e outras áreas, as universidades tem cada dia menos domínio sobre seus próprios recursos, restringindo sua independência.
A realidade é que do ponto de vista orçamentário, a própria existência das instituições está comprometida, pois a verba é insuficiente para manter as atividades mínimas, como no caso da Universidade Federal Fluminense (RJ) que não concluiu os prédios de química e farmácia até hoje. Só a título de exemplo, um levantamento recente mostra que nos últimos 10 anos as instituições federais perderam 73% dos recursos de investimento e manutenção, de R$ 2,78 bilhões para R$ 760 milhões em 2019. Nesse cenário do caos, muitas instituições precisam negociar emendas parlamentares para garantir término de obras. Ou seja, neste caso, a autonomia das universidades é diretamente proporcional ao orçamento a ela destinado.
Além dessa intervenção indireta exemplificada pelo orçamento e administração, o Brasil já viveu períodos de atuação direta do governo dentro das universidades. Quando os militares deram um golpe e instauraram uma ditadura militar no país, o Ministério da Educação estabeleceu seus planos políticos para a pasta em acordo com a USAID, órgão de política externa estadunidense. Segundo o documento Memórias da Ditadura, "Seu propósito era financiar programas de desenvolvimento em países pobres que tinham importância estratégica para os Estados Unidos dentro da Guerra Fria, sempre com objetivo de enfraquecer movimentos populares, revolucionários e anti-imperialistas. No Brasil da ditadura, a educação foi um foco prioritário do financiamento externo. Os acordos MEC-USAID previam, entre outras ações, a tradução e publicação de livros, reestruturação de programas de ensino, planejamento da reforma universitária e também auxílio para mudanças na educação básica".
Entre abril e outubro de 1964, mais de 100 professores universitários foram demitidos e dezenas de estudantes presos ou expulsos, por defenderem ideias contrárias ao governo. Nos anos que se seguiram, a ditadura se concentrou em dominar completamente a universidade no campo econômico, político e ideológico. Foram incontáveis demissões, aulas vigiadas, pesquisas encerradas, perseguições, prisões e assassinatos dos militantes de esquerda, comunistas e defensores da democracia. Para enfraquecer o movimento estudantil, os militares colocaram as entidades na ilegalidade e criaram o Projeto Rondon, que dentre outras coisas, tutelava as ações de extensão das universidades para atender a demanda do exército.
No Brasil governado por Bolsonaro, vivemos mais uma vez o temor da universidade submetida à política do fascismo no caso da nomeação dos reitores. As universidades seguem por lei o método da lista tríplice para a escolha dos seus reitores, onde o conselho superior elabora uma lista com três nomes e envia para o MEC. Por tradição democrática, na maioria das vezes, é realizada uma consulta pública a toda comunidade acadêmica e os três mais votados formam a lista. Desrespeitando a autonomia de maneira direta, o presidente nomeou reitores que não foram eleitos pela comunidade acadêmica e em 3 dos casos, foram professores que sequer participaram da consulta pública.
Desde o início do governo, o presidente declarou guerra contra o ensino superior público e a ciência, desde cortes no investimento até declarações de que são ambientes de "balbúrdia. Para a população, o custo da intervenção do governo nas universidades é enorme. Com a pandemia, toda a comunidade cientifica vê com preocupação o corte de 34% na pasta do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) para 2021. No mesmo barco, embora o governador de São Paulo, João Dória (PSDB), esteja posando de salvador da pátria com a produção da vacina Coronavac, deve-se lembrar que ele acaba de "cortar 30% do orçamento da Fapesp, fundação que financia bolsas e investe em pesquisas científicas no Estado de São Paulo, incluindo a maior parte das atividades de produção de vacinas no Instituto Butantan" (El Pais, 2021).
Bolsonaro argumenta que as leis permitem que ele intervenha nas eleições de reitores. Por isso, precisamos lutar para mudar esse cenário, com leis mais avançadas na defesa da autonomia universitária. Mesmo que em governos considerados democráticos e progressistas pouco foi feito nesse sentido. A autonomia universitária deve ser política de estado, não deve depender da boa vontade de cada presidente.
É verdade que, ainda que a universidade brasileira gozasse da autonomia completa, não estaria acima da sociedade de classes, como todas as outras instituições e, portanto, continuaria sendo uma ferramenta a serviço dos interesses da classe dominante. O que está em questão para nós é o direito de disputar a hegemonia da burguesia no âmbito da produção científica e do ensino. Esta deve ser um espaço de exposição dos contrários, liberdade de análise e síntese. E principalmente: a ciência e a tecnologia desenvolvidas pelas nossas universidades devem servir para resolver os problemas da sociedade, como fome, habitação, desequilíbrio ambiental, etc. Essa é a luta que devemos travar em cada local com o compromisso de enfrentar os interesses do capital e defender a produção do conhecimento a serviço do povo.
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